31/07/2025
Descentralização Cultural: Utopia ou Promessa Adiada?
Num país onde a descentralização cultural é cada vez mais debatida e defendida em discursos políticos e estratégias públicas, torna-se urgente refletir sobre a realidade das companhias artísticas sediadas fora dos grandes centros urbanos. Como pode uma companhia de dança do interior ser verdadeiramente relevante no panorama nacional e internacional, se os próprios mecanismos institucionais a desconsideram sistematicamente?
A Kayzer Ballet, com sede fora dos grandes eixos urbanos, tem desenvolvido há 12 anos um trabalho contínuo, diário, e não meramente pontual ou baseado em projetos isolados. Com uma atividade sólida, público consolidado, trabalho consistente e visível, é, até hoje, a única companhia de dança profissional do distrito em que está inserida. Este dado, por si só, deveria ser motivo de atenção e reconhecimento. Contudo, a realidade é outra.
Em mais de uma década de existência, a DGArtes — Direção-Geral das Artes — nunca veio ao terreno conhecer o trabalho da companhia. Como se pode, então, avaliar com rigor e justiça um projeto artístico que nunca foi visitado? Como se promove a tal “descentralização” se os olhos permanecem fixos no eixo Lisboa-Porto, ignorando o pulsar cultural que floresce no interior, muitas vezes com mais sacrifício, mas também com mais dedicação?
A ausência de crítica especializada aos nossos espetáculos é outro reflexo da centralização: quase ninguém se desloca à Covilhã para ver uma peça de dança. Como se a distância física fosse uma barreira intransponível à observação, análise e legitimação do que se faz fora do circuito habitual. Assim, a companhia é excluída não só dos apoios financeiros, mas também do espaço simbólico da crítica e da memória cultural.
A recente exclusão da Kayzer Ballet dos apoios da DGArtes levanta questões sérias e inadiáveis. Como é possível que uma companhia com este percurso fique de fora dos apoios públicos? Como é possível que não exista um modelo de apoio permanente e "acessível" para estruturas artísticas que trabalham durante todo o ano, contribuindo para a formação, empregabilidade, coesão territorial e acesso à cultura?
A discriminação no acesso aos apoios não é uma percepção: é factual. Temos sido vítimas disso. E se o sistema atual não reconhece a importância de manter companhias residentes, com continuidade e impacto regional, então estamos a falhar como país na missão de garantir uma cultura plural, descentralizada e inclusiva.
Este não é apenas um lamento — é um apelo. Um apelo à responsabilidade pública, ao dever de conhecer antes de avaliar, de apoiar antes que seja tarde. Porque se continuarmos a permitir que estruturas como a Kayzer Ballet sejam deixadas à margem, corremos o risco de transformar a descentralização cultural num slogan vazio, num compromisso adiado indefinidamente.
É tempo de agir. É tempo de olhar para o interior — não como um ponto distante no mapa, mas como parte viva e essencial do nosso tecido cultural.
Ricardo Runa - Diretor Artístico e Coreógrafo Residente da Kayzer Ballet.
Na imagem: "SO-SEE-A-TI" - de Ricardo Runa que teve estreia dia 8 MAIO 2025 no Teatro Municipal da Covilhã.